João Alberto, que trabalhava como soldador, era pai de quatro filhos e companheiro de Milena Borges Alves. Na noite do dia 19 de novembro, véspera da Dia da Consciência Negra, João e Milena decidiram fazer compras em uma unidade da rede de hipermercados Carrefour, em Porto Alegre.
Lá, João se dirige a uma funcionária do supermercado, enquanto fazia um sinal com a mão para a mesma. Há algum desentendimento no local. E, logo, João é levado para fora por Magno Braz Borges, um policial militar temporário, que estava trabalhando como segurança e por Giovane Gaspar da Silva, outro segurança da rede, contratados de uma empresa terceirizada, a Vector.
Além disso, uma agente de fiscalização da unidade, Adriana Dutra, também os acompanhava. Não se sabe o que os quatro conversaram nesse trajeto, se é que conversaram alguma coisa. Mas sabe-se que ao atravessar a porta de saída, João deu um soco em um dos seguranças, momento este em que o espancamento se inicia. Os dois seguranças estão presos e vão responder por homicídio triplamente qualificado, por motivo fútil, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.
Então, o que foi diferente desta vez? O que colocou esse crime na cena escancarada? A filmagem feita por um entregador do mesmo hipermercado. A cena é dura, forte, cruel. Dois homens brancos, em questões de minutos, liquidam a vida de um homem negro. Cenas que escancaram o massacre do povo negro. Mas muitos parecem ainda não se importar.
Adriana, a agente de fiscalização do Carrefour, por exemplo, aparece na filmagem, com um celular na mão como se estivesse, por sua vez, filmando João Alberto ser assassinado. Mas sua perspectiva era radicalmente distinta da do entregador. Ela, ao perceber que havia alguém registrando a cena, desfere ameaças, como “vou te queimar na loja”. Ela também dificulta que pessoas se aproximem de João Alberto e possam ajudá-lo. Adriana teve participação decisiva no homicídio, visto que ela tinha poder de fazer cessar a cena racista, grotesca.
Mortes de homens negros no Brasil
Conforme o Professor Flávio Batista, que é mestre em direitos humanos pela UFG, graduado em Geografia pela mesma universidade e pesquisador do Grupo de Estudos em Sociologia Fiscal (GESF) da UFG, o episódio foi mais um ataque à família negra brasileira. Para ele, o caso se trata da continuidade de um roteiro bem elaborado, como se aquela brutalidade pudesse ser aceita sem comoção. “Pergunto-me quantos casos como esse não devem ter acontecido. A diferença é que dessa vez essa violência foi filmada. Ali não morreu só João Alberto, mas toda uma comunidade que abre os jornais todos os dias com dezenas de casos assim, e o que mais é assustador; muita gente não se comove. Não só aquela vida foi tirada como a própria possibilidade do luto”.
Essa poderia ser mais uma história de homicídio de um homem negro. Fato que ocorre todos os dias no Brasil. De acordo com dados da CPI da Investigação do assassinato de jovens no Brasil, por exemplo, a cada 20 minutos, um jovem negro é morto em nosso país. Conforme o mapa da violência no Brasil, anualmente, mais de 50 mil pessoas são vítimas de homicídio doloso, em nosso país.
É necessário ressaltar que as vítimas, conforme o mapa, apresentam algumas características comuns, sendo 53% delas jovens; destes, 77%, negros e 93% do sexo masculino. Isso significa que homens negros morrem três vezes mais que homens brancos.
Conforme Flávio, “para termos uma ideia de quanto o extermínio da população negra é um projeto para destruir a família brasileira, vejamos um dado assustador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a maioria (65,1%) dos 172 policiais assassinados no Brasil em 2019, de folga ou em serviço são negros; oito em cada dez suspeitos mortos pelas forças de segurança são negros (79,1%); enquanto as vítimas de crimes violentos são três negros em cada quatro (74,4%)”.
Boa parte desses policiais, de acordo com Flávio, moram onde os demais negros também moram, ou seja, na periferia e são do mesmo segmento socioeconômico da maioria da população negra brasileira. “Deveríamos ficar perplexos com isso, o projeto está tão bem enraizado, que uma vez que a violência está concentrada contra a população negra, dado o processo histórico de exclusão e marginalização, a consequência é a naturalização do extermínio desses corpos sem gerar nenhum tipo de comoção”, diz o Professor.
Projeto de genocídio da população negra
Para Flávio, esse projeto de genocídio da população negra não está desenhado de forma que qualquer um possa o entender como tal. “É como se as instituições brasileiras fossem desenhadas em um espelho embaçado, você não sabe ao certo o que está ocorrendo”.
Os avanços constitucionais dos últimos anos, conforme Flávio, não tiveram respaldo no orçamento, nem no próprio desenho de políticas públicas. Boa parte do aparato estatal brasileiro foi construído longe dos interesses da população, consequentemente, os mais pobres, cuja maioria é de negro e negra, ficaram de fora dessa construção.
“Em outras palavras, o Brasil construiu condições para que todos nós, nos responsabilizássemos com nossa dívida histórica e combatesse as várias faces do racismo. O resultado foi que os infortúnios da miséria e da violência fossem naturalizados nos corpos negros”.
O Professor, então, relata acerca de dois casos em Goiás que ilustram como esse projeto não é facilmente percebido. A estudante, Nathália Araújo Zucatelli, foi morta por assaltantes que levaram seu celular, quando saia da escola localizada em um setor nobre de Goiânia, no dia 22 de fevereiro de 2016.
“À época tornou-se repercussão nacional e o governador de Goiás, Marconi Perillo, um dia depois da morte de Nathália, anunciou a criação da força tarefa denominada ‘Goiás com vida, cruzada pela paz’, que prometia não só combater a violência como prometeu solucionar o homicídio da estudante. Nathália era branca. Sete dias depois naquele mesmo ano, na cidade de Aparecida de Goiânia, região metropolitana de Goiânia, outra estudante foi morta na porta de casa por assaltantes que levaram seu celular. A vítima era Jéssica Ferreira da Silva, negra e moradora do Jardim Tiradentes, bairro periférico de Aparecida de Goiânia-Go, diferente do caso anterior, não teve anúncio de força tarefa ou grandes manchetes nacionais”, conta Flávio.
A brutalidade sem comoção
Para o Professor, o assassinato de João Alberto foi mais um ataque à família negra brasileira. “Trata-se da continuidade de um roteiro bem elaborado, como se aquela brutalidade pudesse ser aceita sem comoção. Pergunto-me quantos casos como esse não devem ter acontecido?! A diferença é que dessa vez essa violência foi filmada”. Para o professor, “ali não morreu só João Alberto, mas toda uma comunidade que abre os jornais todos os dias com dezenas de casos assim, e o que é mais assustador: muita gente não se comove. Não só aquela vida foi tirada como a própria possibilidade do luto”.
O assassinato de João Alberto ocasionou protestos nas redes Carrefour do país e separou opiniões quanto ao caso. Em meio aos gritos de protesto antirracista, ideias de que “não existe racismo no Brasil” e de que apontar a cor de alguém é desumanizá-la circularam nas mídias. Para Flávio, ambos os posicionamentos andam em uma mesma linha, lembrando o enfadonho discurso racial da ditadura militar, o qual afirmava existir integração entre negros e brancos. “Uma tentativa de colocar os conflitos internos por baixo dos panos, assim como divulgar uma democracia racial para o mundo, devido aos interesses econômicos”.
“É bom lembrar que naquele momento os militares estavam expandido suas relações econômicas com países africanos recentemente descolonizados e pegava mal mostrar como as desigualdades raciais aqui eram grandes. É um posicionamento comum para quem não quer enfrentar os desgastes com os conflitos e não enfrentar os interesses por trás do atual estado de coisas”, ensina o Professor.
A “justiça” pelo racismo
Algumas pessoas também proferiram que foi merecido, que João Alberto causou a própria morte, que ele era um homem perigoso, visto possuir antecedentes criminais. É importante ressaltar três questões. Como os seguranças saberiam de seus antecedentes criminais no momento do homicídio?! Teriam esses seguranças poder para decidir o que fazer com o destino de João Alberto? Não! Mesmo que João Alberto disparasse um soco contra um deles? Mesmo assim. Esses seguranças não tinham direito de agir como agiram.
Esse tipo de argumento consiste em defender a pena capital, também conhecida como pena de morte, que tem alguns pontos centrais de sustentação, sendo o merecimento um deles. É possível mesmo desenhar uma lista com condutas que devem ser punidas com a morte? E quem seria o responsável por essa lista? E pelo veredicto de morte? Os seguranças? A agente de fiscalização? Você? No momento do crime, os antecedentes criminais de João Alberto não eram uma questão. E, depois do crime, não deveriam ser. A questão é que as vítimas dessa cena bárbara são os negros. Em uma generalização de casos, como explicitados acima, é o que se vê: homens brancos condenando o homem negro à desumanidade e à morte.
Agora, o direito ao direito de defesa que foi arrancado de João Alberto, é o mesmo direito fundamental que pode assegurar um processo justo aos seus assassinos, brancos. Um direito que é universal, mas que não funciona para todos. Não somente o direito à defesa, mas o direito à própria vida do negro não opera no nosso sistema sócio-econômico.
Para Flávio, essas reações quanto o caso demonstram como a violência naturalizou-se de tal maneira a ponto de tudo ser relativizado. Comentários como o de que João Alberto merecia a morte por ter antecedentes criminais “só demonstram como o convívio com a violência é um dos traços mais característicos da nossa sociedade. Não importa o que ele tenha feito, a resposta foi completamente desproporcional”.
O professor se questiona sobre os protocolos de segurança desenvolvidos para cenas como a que foi presenciada, a do supermercado. “Há vários cursos para preparar profissionais de segurança para só ficar no papel? Nada ali é justificável. Contudo, é preciso ressaltar, aqueles seguranças seguiram uma lógica que parece bem enraizada nessa rede de supermercados; a violência gratuita e desproporcional que para eles são elementos perigosos. Pergunto-me: será que se o sujeito morto tivesse a pela clara, o olho azul, o cabelo loiro o tratamento seria igual? Haveria essa relativização?”. Lidiane Brandão Biezok, mulher branca, de 45 anos, a suposta advogada internacional indiciada por injúria racial, lesão corporal e homofobia, após cometer tais crimes em uma padaria de São Paulo (SP), pode ter algo a nos contar sobre isso.
Injúria racial e racismo
Há ainda os que defendem não haver racismo no caso João Alberto, pela não evidência que corroboraria para que os seguranças tivessem cometido o crime pela cor da pele de João. “Quando falamos em racismo estrutural, estamos dizendo que as nossas ações são perpassadas por uma lógica cultural, econômica e de poder. Isso não significa que uma atitude individual pode ser entendida fora de toda essa conjuntura”, explica Flávio.
O Professor acrescenta ainda que todo o racismo é crime e que há uma confusão acerca dos conceitos de injúria racial e de racismo por parte de alguns. “A injúria racial possui fiança, já o racismo é inafiançável e imprescritível. Como os elementos na morte de João Alberto, tem se mostrado constantes, é possível tipificar como racismo, tanto do ponto de vista da lei quanto do ponto de vista sociológico do termo”, alega Flávio.
É importante ressaltar que o racismo é um fenômeno processual e histórico. “Não é produto do comportamento dos indivíduos. Ao contrário, sua dinâmica produz os indivíduos e suas subjetividades que são atravessadas pelas condições raciais. É resultado de um mundo forjado a partir da ideia da raça, quando foi produzido uma ideia de um mundo hierarquizado a partir da cor da pele e do lugar de determinadas pessoas na sociedade. Seus efeitos invadiram todas as dimensões da sociedade, consequente, o nosso próprio imaginário”, ensina o Professor.
A Faculdade Sensu repudia veementemente a morte de João Alberto assim como todo e qualquer ato racista. Deixe seu comentário.