Hoje, a Lei Maria da Penha comemora 14 anos desde sua promulgação, em 07 de agosto de 2006. A lei surgiu em nosso ordenamento jurídico após longos passos de dor, sofrimento e luta. A Lei Maria da Penha é considerada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) como a terceira melhor lei contra violência doméstica do mundo. Entretanto, 14 anos depois e os registros de violência contra a mulher têm aumentado significativamente no Brasil.
Conforme relatório do Ministério da Saúde, com base em dados do Sistema de Informação de Agravo de Notificação (Sinan), divulgados em setembro de 2019, a cada 4 minutos, no Brasil, uma mulher é agredida por um homem. Sendo este, sobretudo, conhecido, e tendo o fato ocorrido em espaço doméstico-familiar. Ainda no final de 2019, conforme números do Monitor da Violência – um estudo do núcleo de estudos da violência da USP em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o G1 – uma mulher é morta a cada 2 horas sendo vítima de violência, no Brasil.
Violência, Feminicídio e Quarentena
Nestes tempos de quarentena, os números bateram recordes absurdos. No Rio de Janeiro, de acordo com relatório do Plantão da Justiça estadual, os números, em março, aumentaram em mais de 50% e em São Paulo, 30%. No mês de março, em São Paulo, conforme dados do Núcleo de Gênero e do Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim) do MPSP, foram decretadas, em caráter de urgência, 2.500 medidas protetivas.
Esses números podem ser consequência tanto do crescimento no número total de casos quanto do aumento no número de notificações às autoridades. Em Goiás, o número dessas ocorrências caiu durante o mês de março. Entretanto, delegadas acreditam que isso se deve a uma subnotificação dos dados, com as vítimas impossibilitadas de saírem de casa.
De acordo com divulgação de dados de pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os casos de feminicídio subiram 22,2% em março e abril nos 12 Estados brasileiros. Essa coleta de dados só reforça a grave violência contra meninas e mulheres no Brasil.
A questão é que ainda temos muito o que falar sobre a Lei Maria da Penha e a condição da Mulher em nosso país. E esse é o assunto do texto de hoje.
A quem a lei se direciona?
Vítimas
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) é direcionada a resguardar pessoas que se identificam com o sexo feminino. Assim, mulher transgênero e mulher transexual também são protegidas pela lei. A violência doméstica contra a mulher independe, não só do sexo de nascimento, mas também de sua orientação sexual (hetero, homo, bissexual, etc.) e se revela como um tipo de violência de gênero. Mas, é importante resguardar que violência contra à mulher não é sinônimo de violência de gênero.
As relações de gênero só podem ser pensadas e explicadas pelo entrelaçamento das categorias de gênero, classe, raça/etnia. Os gêneros são produtos de uma construção cultural patriarcal e machista que determina, logo, de base, o masculino como a matriz hegemônica do meio social. O feminino é resto. Imagina agora o que não se encaixa nessa linha binária masculino-feminino.
Conforme a ideologia dominante, os atores sociais são, assim, de antemão, conduzidos à violência de gênero. A agressividade e a violência masculina passam a ser vendidas como naturais, enquanto a submissão feminina é cobrada pelo meio social como um dever.
Agressores
A lei Maria da Penha é direcionada a punir o homem agressor e, conforme o Superior Tribunal de Justiça, a mulher agressora também. Desde que se caracterize o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade entre agressor e vítima. É importante salientar que muitas mulheres são instrumentalizadas a operarem com o sistema que as aprisiona.
Alguns exemplos de mulheres como agressoras são, infelizmente, bem fáceis de listar, como: uma mãe que agrediu sua filha; uma mulher, em relação homoafetiva, agredindo sua namorada. Na Lei Maria da Penha, a vítima precisa estar em situação de vulnerabilidade em relação ao agressor, o qual, inclusive, não precisa ser nem marido, nem companheiro, nem parente.
É sempre bom lembrar que quando se trata de gênero, nenhuma categoria cumprirá exatamente com as ordenações sociais que lhes são impostas. Principalmente quando se entende que a violência de gênero se perpetua para outros grupos, ainda mais marginalizados que a mulher heterossexual, como os LGBTQIA+.
Os tipos de violência
A lei Maria da Penha contempla casos de:
- Violência Física: apertar, beliscar, chacoalhar, chutar, empurrar, espancar, estapear, socar a vítima, etc.
- Violência Psicológica: fazer uso de gaslighting – fazer a mulher achar que está ficando louca, perdendo a sanidade mental. Assim como perseguir, vigiar, importunar, invadir privacidade, interromper tranquilidade da vítima e etc.
- Violência Sexual: Estupro ou Estupro de Vulnerável; importunação sexual ocorrida dentro de ambiente doméstico, familiar ou em relações íntimas de afeto, etc.
- Violência Patrimonial: tomar para si o dinheiro da vítima, privá-la de bens básicos, impedir o acesso da vítima ao patrimônio do casal. Assim como se desfazer, quebrar e/ou esconder bens da vítima, etc.
- Violência Moral: expor publicamente a vítima, xingando-a, difamando-a, caluniando-a, injuriando-a, divulgando a intimidade, etc.
Quem é Maria da Penha?
A lei Maria da Penha se deve à Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica casada com Marco Antonio Heredia Viveros, um professor universitário. Maria sofria agressões graves do até então marido. O qual tentou, em 1983, matá-la, em circunstâncias distintas. A primeira sendo com um tiro de espingarda, que a deixou paraplégica e meses em internação hospitalar, e a segunda, logo depois de sua volta do hospital, tentando eletrocutá-la durante o banho.
Maria conseguiu sair de casa devido a uma ordem judicial e, a partir disso, deu início a uma luta na justiça a fim de condenar Heredia. Nessa época, em que a Lei Maria da Penha não existia, os juizados especiais criminais é que julgavam esse tipo de caso, que, para nossa sociedade, era caso de menor potencial ofensivo.
Nesse meio tempo, a defesa de Heredia alegava irregularidades no processo, fazendo com que o processo se prolongasse ainda mais. Assim, o réu aguardava o julgamento em liberdade, enquanto Maria se deparava com inúmeras histórias de mulheres que, tal como ela, sofriam desse tipo de agressão – doméstica. Além de também terem de se deparar com a agressão da incredulidade da justiça brasileira.
Maria da Penha, com o intuito de combater a violência contra as mulheres, lançou um livro relatando as agressões que seu ex-marido cometia contra ela e suas filhas. Ela também conseguiu contactar o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Organizações que a ajudaram a levar seu caso, em 1998, para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Assim, no ano de 2001, o Estado brasileiro foi condenado pela OEA por negligência, omissão e tolerância à violência doméstica contra as mulheres.
Promulgação da Lei Maria da Penha
É importante salientar que a lei Maria da Penha somente foi promulgada na jurisdição nacional em consequência da condenação do estado brasileiro no sistema Interamericano de Direitos Humanos. Como se tivéssemos sido obrigados a criar um dispositivo legal para prevenir e punir a violência doméstica em nosso país, e não porque nós, enquanto nação, estivéssemos, de fato, dispostos a enxergar mulheres que, como Maria da Penha, estavam e ainda estão nesse tipo de situação. A Lei Maria da Penha foi aprovada por unanimidade, em 2006, pelo congresso.
O que mudou com a criação da Lei?
Muitas mudanças ocorreram com a sanção da Lei n. 11.340, a Lei Maria da Penha. Algumas delas foram:
- Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher
- Cria competência para julgar crimes de violência doméstica
- Define a detenção do suspeito de agressão
- Define pena e agravante de pena: ficam proibidas as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas)
- A violência doméstica contra a mulher deixa de ser considerada como de menor potencial ofensivo.
Policiais e Maria da Penha
Em situações onde cabem a Lei Maria da Penha, a autoridade policial deverá:
I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos na Lei Maria da Penha e os serviços disponíveis.
O policial deve, após o registro da ocorrência, seguir os seguintes procedimentos:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV – determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V – ouvir o agressor e as testemunhas;
VI – ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VII – remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.
O dia de hoje é, sem dúvidas, muito importante, um dia de resistência e luta. Entretanto, como é fácil de perceber nos jornais, nas ruas e em casa, é preciso, ainda, muita conversa sobre a Lei Maria da Penha e a igualdade de direitos entre todos os gêneros. O que mais podemos fazer para dizimar a violência estrutural e recorrente nas relações patriarcais e machistas? O que mais podemos fazer em prol dos direitos das mulheres?
A importância dessa causa é reconhecida por nós da Faculdade Sensu. A violência de gênero praticada pelo homem contra a mulher não deve ser, em hipótese alguma, tolerada. É importante salientar que nós vivemos em uma sociedade que naturaliza práticas violentas como cotidianas e dentro de nossas próprias casas. Como uma instituição de ensino defendemos que o primeiro passo na contramão da violência é a possibilidade de educação.
A denúncia é um instrumento importante nessa luta! Se você presenciar violência contra a mulher não se omita, ligue para o 180 e denuncie. Omissão também mata.